Porque a vida merece ser "degustada"


A Escola de Valores e a humanização...o compromisso ético da Educação

02-11-2017 13:48

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Nascido na cidade do Porto, em 1951, o Profº José Pacheco tem sido, desde há largos anos, um grande dinamizador da Educação democrática e um crítico do sistema tradicional de ensino. Foi eletricista, formou-se em Engenharia, integrou o Ensino, como Profº primário e universitário,  o Conselho Nacional de Educação e é mestre em Educação da Criança, pela Universidade do Porto. Na sua opinião - e na minha também - a aula tradicional é um sistema obsoleto de reprodução de conteúdos, que deixa a desejar naquilo que é o mais importante objetivo educacional: a humanização do indivíduo.

Mentor e prioneiro de uma nova estratégia educativa, implementada na Escola Básica da Ponte, em Santo Tirso, na década de 70 e que inclui referenciais organizacionais, pedagógicos e metodológicos próprios, ao abrigo do Contrato de Autonomia, em meados de 2017 o Profº José Pacheco é já o indutor de mais de 100 projetos para uma nova Educação no Brasil e colaborador voluntário no Projeto Âncora, que segue o mesmo método de ensino do da Escola da Ponte.

Considero-o como um verdadeiro mentor de uma Educação eficiente e eficaz, uma Educação de valores, com imensas provas dadas de sucesso e de bem-estar educacional, que torna os/as alunos/as felizes.

É por tudo isto que convidei o Profº Pacheco a ser entrevistado no âmbito da rubrica Mindset Experts do Blog.

 

P.M. -  Profº, conte-nos como se verificou a tomada de consciência acerca da necessidade de mudança no sistema educativo.

J.P. - Nos idos de 1970, eu estava quase a desistir de ser professor. Sentia que, “dando aulas”, estava a excluir gente. Percebi que não devia continuar a dar aulas, mas eu não sabia fazer mais nada! Só sabia dar aula. A Ponte surgiu, talvez não por acaso, para me dar uma última oportunidade.

Era uma escola como qualquer outra, escola pública degradada, que albergava as chamadas “turmas do lixo”, maioritariamente constituídas por jovens de 14, 15 anos, que não sabiam ler nem escrever, e que batiam nos professores. Ali, encontrei duas pessoas, que faziam as mesmas perguntas que eu fazia: “porque é que eu dou aulas bem dadas e há alunos que não aprendem?”

Foi, então, que aconteceu algo inusitado. Como quaisquer outros professores, éramos profissionais competentes. Porém, deparávamo-nos com a falta de um compromisso ético com a profissão. Precisávamos mais de interrogações do que de certezas que nos tinham inculcado.

P.M. - Essa tomada de consciência foi imediata ou foi algo que foi acontecendo e se foi fundamentando à medida que lecionava?

J.P. – Foi um processo longo e doloroso. Chamaram-nos loucos, lunáticos e outros epítetos que, por pudor, aqui não irei reproduzir...

Quando fiz as primeiras intervenções públicas, mais do que dizerem que o projeto era um arroubo de jovem professor, diziam-me que, quando eu fosse mais velho, iria ganhar juízo. E os detratores agiram de forma violenta explícita. O projeto da Ponte foi feito de sofrimento e resiliência. Quando conseguimos alcançar excelentes resultados, o sofrimento maior foi termos descoberto que muitos desses ataques eram provenientes de escolas próximas. Apercebemo-nos de que o maior aliado de um professor é o outro professor, mas, também, de que o maior inimigo de um professor, que ouse fazer diferente para melhor, é o professor da escola do lado.

P.M. - Teve dúvidas quanto ao que poderia fazer, ao que podia introduzir de novo?

J.P. – Ainda hoje tenho dúvidas...

P.M. - Esse processo de mudança foi difícil de implementar?

J.P. - Um dia, talvez eu conte a história da Escola da Ponte. No decurso de mais de quatro décadas, foram muitas as ações da maldade humana dirigidas contra a Ponte. Da destruição da nossa horta à destruição do hospital de animais, que as crianças cuidavam com tanto desvelo, ações levadas acabo por criminosos a soldo de políticos locais, que pintaram com o sangue das vítimas na parede da escola: Morte ao professor. Do lançamento de panfletos, na calada da noite, contendo acusações falsas, até à publicação de boatos em jornais. Do terrorismo verbal, via telefone, até à agressão física. Há cerca de uma dúzia de anos e com burocráticos argumentos, um ministro de má memória também tentou destruir o projeto da Escola da Ponte. Os sindicatos, a universidade e a sociedade civil impediram que essa obscenidade ministerial obtivesse êxito. No caso de Monsanto, os professores permitiram que o autoritarismo imperasse e que critérios de natureza pedagógica fossem desprezados. Permaneceram apáticos. Mais uma vez, nada fizeram para acabar com a impunidade. É estranho e pesado esse obsceno silêncio.

P.M. - O que sentiu, aquando dos primeiros resultados?

J.P. – Sentimos um misto de surpresa e algum orgulho. Mas também cansaço e contenção. Quarenta anos depois, a Escola da Ponte tem nota máxima na avaliação externa do Ministério da Educação. Mas isso não ilude a necessidade de recomeçar, de rever processos, pois os projetos deverão estar em permanente fase instituinte.

P.M. - Um conceito de escola sem aulas, sem turmas, sem provas, em que os/as alunos/as são os protagonistas e com resultados comprovadamente eficazes. Em que reside este sucesso?

J.P. – Se, há mais de quarenta anos, o modo com a escola funcionava negava a muitos seres humanos o direito à educação, a escola não poderia continuar a ser gerida desse modo. Se o modo como nós trabalhávamos não lograva assegurar a aprendizagem a todos os alunos, nós não poderíamos insistir nesse modo de ensinar.

Quando modificamos o modo, asseguramos a todos o direito de ser sábio e feliz. Começamos a receber alunos expulsos de outras escolas, alunos chamados “deficientes”, acolhíamos jovens evadidos de outras escolas, enfim!  Todos se transformavam e aprendiam.

O “sucesso”, que referes, reside na recusa de práticas antiéticas.

P.M. - Como define uma Escola de valores?

J.P. – Escolas são pessoas. Não são edifícios! E as pessoas são os seus valores. Quando esses valores são transformados em princípios e os princípios são assumidos em ação, dão lugar a a projetos.  Bastará refletir sobre palavras chave de projetos do século XXI (comunidade, rede, círculo...). São incompatíveis com a manutenção de órgãos unipessoais e hierarquias burocratizadas. Autonomia não rima com hierarquia...

É necessário passar de uma cultura de solidão para uma cultura de equipe, de corresponsabilização, cooperação. Sozinhos, os professores nunca conseguirão ensinar tudo a todos.

O professor assume dignidade profissional, sendo autónomo-com-os-outros. Enquanto o exercício da profissão não se pautar por critérios de natureza pedagógica, enquanto a burocracia prevalecer em detrimento da pedagogia, os professores continuarão a ser considerados os “bodes expiatórios” dos males do sistema. Faltará apenas que os professores assumam atitudes coerentes com os valores contidos nos seus projetos de papel. Que, em todo o tempo de aprender prevaleça a prática de uma comunicação horizontal, dialógica, em contraste com a cultura predominante nas escolas, uma cultura assente no individualismo, na competição desenfreada, na ausência de trabalho em equipe, na ausência de verdadeiros projetos.

Sejamos esperançosos. Assisto ao surgimento de projetos geradores de espaços de convivência reflexiva, de que as escolas carecem. Vejo cuidar da pessoa do professor, para que ele se veja na dignidade de pessoa humana e veja outros educadores e alunos como pessoas. Vejo valores em prática.

P.M. - Que diferenças foram notadas na Escola da Ponte, entre os/as alunos/as do sistema anterior e os/as do novo sistema educativo?

J.P. – Sobretudo, uma mudança dos comportamentos, uma profunda mudança nas atitudes. Passaram de objetos de ensino a sujeitos em aprendizagem.

P.M. -  Neste momento, o Governo parece ter tido a vontade de mudar e existem um conjunto de Escolas que vão ser Escolas-piloto em termos de autonomia pedagógica. Não considera que existem já provas suficientes quanto ao "caminho" certo e que essa autonomia deveria ser alargada a todas as Escolas?

J.P. – Parece... Mas pressinto que se aproximam novas e subtis regulações.

Acredito nos professores e parto daquilo que eles são, para que se sintam seguros num processo de mudança de uma escola dependente para uma escola autónoma. Talvez apenas seja preciso que os professores, para além de serem competentes, sejam éticos, para que a mudança se opere.

O país alimenta um sistema de ensino baseado na burocracia. Recordo um lamentável episódio. No fim de um ano letivo, com assiduidade plena e significativas aprendizagens realizadas, os alunos da escola de Monsanto “reprovaram por excesso de faltas”. Eu sei que parece mentira, mas aconteceu...

Tudo começou em 2014, quando uma escola acabada de inaugurar foi encerrada pelo Ministério de Educação. Os pais dos alunos optaram pelo ensino doméstico, o agrupamento de escolas deu luz verde ao processo e as crianças foram acompanhadas por duas professoras. Porém, no primeiro dia de aulas do ano letivo seguinte, os pais foram informados de que o ministério não reconhecia a avaliação positiva aos alunos, atribuída pelas docentes. O ministério considerava ilegal a situação dos alunos, enquanto a Comissão de Proteção de Crianças afirmava que o alegado “abandono escolar” não fora provado.

Os pais dos alunos pediram nova transferência dos seus filhos para o ensino doméstico, pedido que, garantem, foi aceite. E, enquanto o caso não se resolvia, uma escola recém-inaugurada e que custou cem mil euros, esteve fechada. As crianças foram transportadas para a sede do município, que dista trinta quilómetros de Monsanto, duas viagens diárias impostas por burocratas, que “acham” que as crianças devem estar fechadas no interior de um edifício a que chamam escola, numa sala de aula com x metros quadrados de área, durante x número de horas em x dias ditos letivos.

P.M. - "A aprendizagem acontece quando há um vínculo afetivo entre quem supostamente ensina e quem supostamente aprende", é uma das suas frases. Fale-nos um pouco desse vínculo afetivo.

J.P.- Com ou sem novas tecnologias de informação e comunicação, a escola precisa ser reinventada, libertando-se de práticas sem resquícios de cooperação, concebidas para alunos dependentes de vínculos afetivos precários, estabelecidos com identidades virtuais.

Poderá acontecer aprendizagem, se forem criados vínculos. Esses vínculos não são apenas afetivos, também são do domínio da emoção, da ética, da estética... A aprendizagem é antropofágica. Não aprendemos o que outro diz, aprendemos o outro. Se tentarmos recordar-nos de um professor de quem não gostamos, compreenderemos por que pouco, ou mesmo nada aprendemos na disciplina por ele lecionada.

P.M.- O sistema educativo que defende, baseia-se em projetos ou área de projeto, correto? Explique-nos um pouco essa metodologia de aprendizagem.

J.P. – Nas escolas que acompanho, foram abolidas segmentações e a aula deu lugar à prática da metodologia de trabalho de projeto, logrando garantir a todos o direito à educação consagrado na Constituição.

No edifício da escola, nas praças, nas empresas, nas igrejas, nas bibliotecas públicas e centros culturais, passamos a contemplar um novo modo de desenvolvimento curricular, duas vias complementares de um mesmo projeto: um currículo subjetivo, nem projeto de vida pessoal, a partir de talentos cedo revelados; um currículo de comunidade, baseado em necessidades, desejos da sociedade do entorno.  

P.M. - Uma última questão, Prof., em que consiste o Projeto Âncora, implementado no Brasil e em que sentido se encontra envolvido no mesmo?

J.P. - Acompanho mais de cem projetos no Brasil, mas muitos mais projetos agitam as águas paradas da educação do Sul. O Projeto Âncora é o mais conhecido. Ganhou fama internacional, após as visitas de muitos pesquisadores estrangeiros, que puderam testemunhar, na prática, a excelência académica e a inclusão social. No Projeto Âncora, todos veem garantido o direito à educação. Ajudei a concebê-lo. E nele participei, diretamente, durante três anos. Agora, que ele “já vai pelo seu pé”, afastei-me, para iniciar um novo projeto, em Brasília. Este irá além da Escola da Ponte e do Projeto Âncora.

P.M. - E planos para Portugal? Existem novos projetos?

J.P. – Apesar dos pesares, nunca desisti de Portugal... Acompanho, à distância, alguns promissores projetos. E neles participarei presencialmente no mês de Maio de 2018.

P.M. - O que lhe vai na alma?

J.P. - Sejamos esperançosos. Assisto ao surgimento de projetos geradores de espaços de convivência reflexiva, de que as escolas carecem. Vejo cuidar da pessoa do professor, para que ele se veja na dignidade de pessoa humana e veja outros educadores e alunos como pessoas.

P.M. -Que mensagem deixaria aos professores e professoras do nosso país?

J.P. - O professor assume dignidade profissional, sendo autónomo-com-os-outros. Porque um professor não ensina aquilo que diz, transmite aquilo que é.

E enquanto o exercício da profissão não se pautar por critérios de natureza pedagógica, enquanto a burocracia prevalecer em detrimento da pedagogia, os professores continuarão a ser considerados os “bodes expiatórios” dos males do sistema. Faltará apenas que os professores sejam, efetivamente, críticos, reflexivos das suas práticas. Que, na relação com qualquer parceiro, se elimine o “período letivo”, o trimestre, o ano letivo... Que, em todo o tempo de aprender prevaleça a prática de uma comunicação horizontal, dialógica, em contraste com a cultura predominante nas escolas, uma cultura assente no individualismo, na competição desenfreada, na ausência de trabalho em equipe, na ausência de verdadeiros projetos.

Muito obrigada Profº José Pacheco. Foi uma honra ter o seu testemunho de vida e de experiência educativa no meu Blog. Até sempre. As maiores felicidades para os seus projetos.

 

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